A Câmara dos Deputados e a igualdade racial

Postado por OLB em 12/12/20

João Feres Júnior, Debora Gershon, Fernando Meireles

Apresentação

Na véspera do dia da Consciência Negra, 20 de novembro, mais um negro tombou no Brasil, espancado por agentes privados de segurança de um grande conglomerado do setor de distribuição de alimentos. Esse novo homicídio soma-se ao alarmante número de negros(as) mortos(as) no país e a um conjunto de outras estatísticas que revelam desigualdades raciais no trabalho, emprego, renda, acesso a oportunidades, mobilidade social, representação política, mercado matrimonial, local de moradia, acesso a serviços públicos, tratamento dispensado por agentes do estado, etc.

A sub-representação dos negros na política é aguda. Dos 541 deputados federais que exerceram mandato no ano de 2019, como titulares ou suplentes, 109 autodeclaram-se pardos e 22 pretos, segundo registros do TSE. Ou seja, isso corresponde a 24% do total de deputados federais, enquanto na população brasileira esses dois grupos somados alcançam a marca de 55% da população. Tendo como pano de fundo o dado da baixa representativa dos negros na câmara baixa, neste boletim traçamos o perfil dos(as) parlamentares que dão voz e incidem, na Câmara dos Deputados, sobre projetos legislativos relevantes para a população negra, seja por promoverem benefícios a essa parcela da população, seja por proporem medidas com potencial de piorar ainda mais a situação de violência e desigualdade política e social à qual os negros estão submetidos.

Para responder a essa pergunta, produzimos o ranking da igualdade racial que, por meio do cômputo ponderado de ações legislativas concretas dos deputados federais (relatorias, emendas, votos e discursos), revela a atuação relativa de cada deputado ao longo da tramitação de projetos de lei importantes para a agenda. A metodologia adotada permite avaliar a valência do comportamento dos(as) deputados(as) (se favorável ou contrário), mas também a intensidade do seu engajamento temático. Nesse sentido, os primeiros colocados são aqueles que não apenas se posicionam favoravelmente aos projetos da agenda (ver seção metodologia), como também têm participação mais intensa nas tramitações analisadas. De forma análoga, os piores colocados posicionam-se mais contrariamente ao tema e apresentam maior engajamento em ações contrárias. Para fins de avaliação, o resultado do ranking é apresentado em notas individuais, numa escala de -10 (atuação extremamente contrária) a 10 (atuação extremamente favorável).

Ressaltamos que o ranking foi elaborado com base na legislatura 2015-2018 por duas razões. A pandemia de Covid-19 dominou a pauta do Congresso ao longo de praticamente todo esse ano de 2020, ao passo que a Reforma da Previdência teve efeito similar em 2019. Na legislatura atual, portanto, não há volume de projetos sobre o tema da igualdade racial suficiente para a elaboração do ranking. Além disso, 256 deputados(as) da legislatura 2015-2018 lograram a reeleição em 2018. Ou seja, o ranking da legislatura passada é instrumento valioso para análise do comportamento de mais da metade dos(as) deputados(as) em exercício.

O quadro geral que o ranking revela

Na legislatura 2015-2018, havia dois grupos majoritários situados em posições distintas da escala de -10 a 10 no que toca o tema da Igualdade Racial. Um dos grupos, o menor, posicionou-se de forma levemente favorável ao tema, enquanto outro, o maior, de forma levemente contrária. O número de parlamentares nos extremos da escala é insignificante.

A nota mediana do plenário – que nos diz como o legislador central, ou pivotal, atuou é de -1,02. No geral, numa legislatura em que PT, PMDB (hoje MDB) e PSDB tinham as maiores bancadas, mas que foi marcada pelo processo de impeachment de Dilma Rousseff, a Câmara atuou negativamente no tema, embora com pouco engajamento.

Gráfico 1. Distribuição das notas no ranking da Igualdade Racial – Legislatura 2015-2018

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Compartamento dos partidos

Embora a Câmara tenha tido comportamento mediano pouco engajado e levemente contrário ao tema da igualdade racial, a análise da atuação das bancadas partidárias revela diferenças expressivas. Partidos de esquerda, como PSOL, PCdoB e PT, que historicamente pautam o assunto dentro e fora do Congresso, tiveram, na média, as notas mais elevadas. Na outra ponta, um grupo numeroso de siglas, do PEN ao PSL (que só passou a abrigar o presidente Bolsonaro em março de 2018), teve nota igual ou menor que zero, com atuação que pode ser lida como de reticente a contrária.

No campo da esquerda, o PSOL é o partido com média mais alta, mas o PT é o que tem maior coesão no que toca ao comportamento de seus parlamentares. Nas demais siglas, o PRTB chama atenção com um média baixa (-1.9), mas com alta dispersão entre os seus afiliados.

Gráfico 2. Ranking por partido, legislatura 2015-2018

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É interessante notar que partidos que historicamente se opuseram às cotas raciais, como o PSDB – por meio dos senadores Paulo Renato Costa e Aloyzio Nunes –, e o DEM – autor da ADPF 186 –, mantêm notas de bancada bastante negativas na legislatura, a despeito de iniciativas como o Tucanafro.

O cenário é similar quando observados apenas os partidos de parlamentares reeleitos para a atual legislatura. Nesse caso, PSOL, PT, PCdoB e PDT ficam com as melhores médias, enquanto Republicanos, PSDB, PL e Patriota com as piores.

Gráfico 3. Ranking por partido, reeleitos em 2018

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Demografia dos dados

Identificado o padrão partidário na condução da agenda da Igualdade Racial, buscamos avaliar se determinadas características da vaga e dos(as) parlamentares têm relação com o seu tipo de atuação. Os resultados encontrados são de grande relevância para o debate sobre a importância da diversidade na representação política.

Em primeiro lugar, não há diferenças no ranking por estado, o que nos permite supor que as clivagens regionais não têm peso no comportamento dos(as) legisladores(as) sobre o assunto. Em segundo, há ao menos três variáveis que despontam como significativas para definição do tipo de atuação do(a) parlamentar: sexo, escolaridade e cor/raça.

Mulheres têm notas maiores do que homens tanto na média quanto em diferentes quantis. Entre elas, além disso, a divisão entre o grupo de favoráveis e daquelas ligeiramente contrárias ao tema é proporcionalmente mais equilibrada. Homens têm comportamento concentrado em notas abaixo de zero, conforme gráfico a seguir.

Gráfico 4. Ranking por sexo, legislatura 2015-2018

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No que toca à escolaridade, há uma descoberta importante: a atuação expressivamente mais favorável ao tema fica a cargo de parlamentares que possuem até o ensino fundamental completo, ou seja, menor escolaridade relativa. O grupo favorável ao tema é majoritariamente composto por parlamentares com esse nível de instrução. É possível afirmar que existe uma correlação negativa entre escolaridade e apoio parlamentar à pauta da igualdade racial. Digna de nota é também a grande similaridade das curvas daqueles que têm até o ensino médio completo e dos que têm educação superior. A hipótese de que o contato com o ambiente universitário promoveria um espírito de maior apreço pela diversidade parece não se verificar aqui, pois os deputados com educação superior mostram-se tão avessos à pauta da igualdade racial quanto aqueles que tem somente o ensino médio completo.

Gráfico 5. Ranking por escolaridade, legislatura 2015-2018

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Por fim, como era de se esperar, a cor/raça declarada pelos(as) deputados(as) ao TSE quando de suas candidaturas guarda forte relação com a atuação favorável ao tema da igualdade racial. Deputados(as) que se autodeclararam de cor preta são os(as) mais favoráveis. Deputados(as) de cor branca concentram-se massivamente em torno de posições levemente contrárias ao passo que os de cor parda dividem-se entre as duas posições, ainda que com maioria em torno da posição contrária. Vale lembrar que pretos e pardos são minoritários na composição da Câmara na legislatura 2015-2018.

Gráfico 6. Ranking por cor/raça, legislatura 2015-2018

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Conclusão

É sabido que a sub-representação dos(as) negros(as) na política tem efeito profundo sobre a capacidade estatal de reverter o quadro de discriminação racial observado no Brasil. O presente estudo confirma essa avaliação. Na Câmara dos Deputados, de 2015 a 2018, a pequena proporção de negros(as) (21%) certamente contribuiu para que a legislatura não se engajasse no tema da Igualdade Racial, nem se posicionasse muito favoravelmente a ele, com exceção de alguns partidos de esquerda.

O perfil conservador da 55a. legislatura também contribuiu bastante para o baixa ativação dessa agenda, pois, como vimos, os partidos de esquerda, nela minoritários, são de longe os mais favoráveis a ela.

O estudo revela que as diversidades de gênero e escolaridade também têm peso bastante relevante na determinação dos rumos da agenda da igualdade racial. Mulheres, em geral, e parlamentares (homens e/ou mulheres) de mais baixo nível de instrução formal são mais sensíveis ao tema, independentemente da cor que têm.

Na atual legislatura, não há volume de projetos que nos permita produzir ranking similar, mas com os resultados obtidos para o período 2015-2018, pudemos notar que o perfil do comportamento dos parlamentares reeleitos no tocante ao tema é bastante similar, o que é razão de preocupação para quem o defende. A pauta da igualdade racial precisa avançar dentro das câmaras legislativas e também fora delas para que o sistema proporcional seja capaz de representar a sociedade brasileira e cumprir o papel que lhe cabe de promover a justiça social e o bem-estar de todos.

Metodologia

Para a elaboração do ranking da Igualdade Racial de que trata este boletim foram analisadas 34 proposições da legislatura 2016-2018, além de 608 discursos e 270 emendas a elas relacionados. As proposições foram selecionadas em conjunto com o Fórum Permanente pela Igualdade Racial (FOPIR) e enquadram-se nos seguintes tipos: a) medidas de caráter punitivo em relação à prática do racismo e da discriminação racial; b) medidas afirmativas, que têm por finalidade promover o benefício de grupos racialmente discriminados; c) medidas sem caráter racial explícito, mas com potencial impacto desproporcional, positivo ou negativo, sobre a população negra e minorias étnicas; d) medidas que dão reconhecimento oficial e proteção às contribuições das culturas africana e afro-brasileira.

Para elaborar este boletim, recorremos às notas do Ranking de Igualdade Racial, elaborado pelo OLB em parceria com o GEMAA e o FOPIR, que mostra quais parlamentares atuaram contra ou a favor do tema na legislatura passada (55º, 2015–2018). No total, o Ranking atribui notas para 560 parlamentares, dos quais 256 permanecem na atual legislatura.

Para complementar a análise, extraímos e processamos dados do Portal de Dados Abertos da Câmara dos Deputados e do Repositório de Dados do Tribunal Superior Eleitoral, que foram posteriormente pareados por meio dos números de CPF dos e das parlamentares. Por conta dessa origem, é importante notar que os dados de classificação de cor/raça utilizados nas análises, bem como de escolaridade, foram auto-reportados pelos e pelas parlamentares. Para calcular as estatísticas descritivas que reportamos nos gráficos, utilizamos o ambiente de programação estatístico R.

Alguns dos gráficos que reportamos no texto exibem funções de densidade, isto é, a probabilidade de que um ou uma parlamentar tenha dado score; valores mais altos indicam que há mais parlamentares com determinado score, e vice-versa. Em outros gráficos, que indicam valores estimados, pontos mostram as médias estimadas, enquanto que as linhas horizontais representam intervalos de confiança de 95%, estimados por meio de modelos de regressão lineares.

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